sexta-feira, 23 de maio de 2008

A morte de um homem

Espectadores assistem, em semicírculo, a um espectáculo imemorial: a agonia de um ser humano que vai morrer. Toda a sua vida se esvai através do furo que a bala lhe embutiu no corpo. Agrupa-se o cortejo fúnebre improvisado e antecipado na negrura lançada pelas luzes fundidas da via pública . Quem contempla a vida que se esgota lentamente é aprisionado num transe litúrgico. A realidade crua apodera-se de todos, que então se fundem no cenário, tornam-se continuidade da calçada e dos prédios que se precipitam sobre aquela mórbida encenação – estátuas, estáticas, gélidas e belas, quedam-se pintadas de azul pelas luzes do carro de polícia que chega. O homem que morre também mata: a sua morte é uma medusa petrificante. Os fantasmas dos futuros que morrem assombram os espíritos de todos os presentes. Deitado de costas, os seus olhos revirados, de um branco nublado, submetem-nos a um escrutínio absoluto. O olhar cego do moribundo esquiva-se aos prédios e fita um céu negro e implacável – o seu abismo que sempre o seguiu, prudente, silencioso, e que agora desaba, com todo peso do vazio, por cima da sua cabeça. É um olhar que fita o negro céu voltado sobre si mesmo, absorvido nas trevas da cegueira antevê o seu futuro, está a morrer. Em breve toda a sua existência será apenas um negrume implacável que o engolirá no esquecimento. Antes do mundo se esquecer dele esquece-se ele do mundo e, voltados de costas um para o outro, mundo e morto separam-se, ambos sem olhar para trás. Haverá relatórios policiais a relatar um incidente na noite, certidão de óbito, a dramaturgia mediática da crise e da insegurança. Haverá lágrimas dos seus próximos que chorarão o homem que foi, que jamais será. Mas nem o espesso sangue que se prende à calçada nem as memórias das testemunhas sobreviverão à impiedade do tempo. Talvez seja este mísero texto a única marca de que aquele homem, de facto, morreu.