segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O Zorro da Golegã

Orgulhoso, em plena treva da noite, o Zorro da Golegã deixa-se passear, é passeado. O seu puro sangue lateja nas têmporas, o vinho tinto do jantar, e também entre as arqueadas pernas equestres. A virilidade que liga o homem ao animal é também uma união de corpo e de sangue. Traja a rigor, de cinzento e negro, como entre os seus pares manda a tradição, e sustenta, no alto da cabeça, um chapéu negro de longas abas. Este é um verdadeiro Zorro, cuida dos seus como ninguém, dos outros só não cuida do que não pode. Um seu direito, pensa o herói que ostenta a herança da nobreza, que lhe é natural e que o eleva acima do resto de nós, homens vulgares e pobres, irremediável condição, toda a gente sabe que nada cresce na estéril herdade do vulgo. É um messias incompreendido, o Zorro da Golegã, que possui uma verticalidade de homem são, porque é o último homem, e salvo, porque salva o mundo inteiro com uma moralidade contagiante. Salva quem não se apercebe de que foi salvo e salva mesmo aqueles a quem a perdição seduz e a salvação repele. Mas não se incomoda, o Zorro da Golegã, com tão mesquinho facto e brilha por onde passa. Deixa-se deslocar, o deslocado, no dorso do seu corcel, e assim lava o séptico lodo humano à sua volta, que definha para renascer enquanto criança, anjo, santo converso, com uma face resplandecente, reflectindo a luz de tal astro.
Passeava-se pela rua quando repara numa pequena desordem. Aquecido pelo álcool e inchado pelo estatuto, aproxima-se dos arruaceiros para impor a ordem. Qual Dom Quixote, montado num outro Rocinante, é enxovalhado e ridicularizado, pobre Zorro, triste pela verdade incompreendida que transporta, pela plebe que não mais se ajoelha perante os nobres cavaleiros. Revoltado e humilhado, uma vez que não mais lhe é reconhecida a função social que por direito as herdadas terras lhe conferem, amaldiçoa todos os deuses e todas as gentes. Não saberão o quão importante é para o mundo este homem a cavalo? Não saberão que sem ele tudo estaria perdido, uma vez que representa o último baluarte da moral nesta terra danada? "Não merecem o pouco que têm", escapa-se-lhe o conjuro que denuncia que esse pouco não lhe escapa à cobiça, justa claro está, e afasta-se, fingindo não se incomodar com tão mesquinha gente.