sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Compaixão

A dor dos amantes enrijece o coração, tal como a súplica dos condenados afia a lâmina do carrasco.

sábado, 22 de setembro de 2012

Silêncio

Anima a matéria que te compõe, acredita nas suas promessas. Os mais sublimes templos do espírito sucumbem ante a obtusa realidade dos corpos.

As palavras morrem e deixam um vazio onde a explosão de mil estrelas não passa de silêncio.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O mundo das palavras



No caminhar desinteressado rumo ao entardecer,
a muda inquietação do jardim torna-se espessa
e pesada. O hiperplano da visão desdobra-se, implodindo em espaços e tempos largos,
incivilizados.
Abruptamente estala-se o verniz e saio do mundo das palavras.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

ATLAS, O NÓMADA




Qualquer espírito ficaria inquieto se, na semi-lucidez de uma noite húmida de Inverno, sentisse apoiada sobre o crânio toda a massa do firmamento e, na palma dos pés, o empurrar da superfície terrestre que lhe reage violentamente. Que força terá maior existência que o desejo de reencontro recíproco entre o alto e o subterrâneo?

Pensar que o corpo separa é puro engano, este nada sabe do que está acima ou abaixo, a montante ou a jusante. Ainda menos quando ofuscado pelo astro negro que escurece o dia durante a noite e que exige às almas dedicarem-se, como marionetas ébrias, aos ritos do sangue.

O peso que se faz sentir nos torneados dos tornozelos é de origem desconhecida, embora se suspeite desde há muito que é um ataque ao que é dito, ou pelo menos pensado, por aí. A palavra corta a realidade em fatias e a mentira cobre-as com geleia de frutos silvestres: alusão irónica ao pequeno-almoço canibal dos burgueses.

Comprimida, a existência nómada persegue a posição futura desta desunião, descrita nas páginas do livro que escreverá antes de nascer, buscando uma linha de fuga perpendicular à insustentável realidade, sem se aperceber de que se trata da sua morte.

Por sorte é-nos vedada qualquer consciência disto.

...

"Era uma vez, com mais duas seriam três, quatro homens e cinco mulheres, com seis olhos sobre sete bocas. Amavam-se e agrediam-se até ficarem feitos num oito. Era sétima a hora, do sexto mês, quando a quinta mulher disse ao quarto homem para se tornar o terceiro espelho, com mais duas não o faria sequer a primeira vez."

No condensar pulsante de um número-género da multiplicidade andrógina só interessa a cadência que embala as estrelas desde o nascimento até à morte. Tudo o resto é ruído de um pedal motorizado.

...

As vozes provenientes dos volumes impeditivos ao sonambulismo quotidiano, que nos chamam estranhos nomes mas sabem quem nós somos, quero-as eco da alegre cantiga assobiada pelo errante.

A sensação de ser esmagado por existências, pela repetição eterna da una experiência, vista através de infinitas lentes contorcidas, quero-a arrepio de ser o absoluto.


sexta-feira, 13 de março de 2009

SANTOLA DE AÇO

The Shell is Made of Steel (Carapaça de Aço) from Siamese Panoptic.

A carapaça de aço que o ser humano constrói à sua volta é uma segunda pele. Resistente, flexível mas insensível, isola o ser e torna-o frio. É símbolo da alienação secular moderna e é produto da rejeição por parte do homem da sua própria imagem, reflectida nos outros.

O "desenvolvimento" humano não diminuiu a competição mas deu-lhe novas roupagens, formadas no seio das instituições que medeiam as relações humanas. Estas complexificam-se, multiplicam-se labirinticamente. O resultado é a impossibilidade teleológica extra-instrumental, dos fins últimos, cuja vista se perde num emaranhado de meios: a inviabilidade dos valores se imiscuírem na normatividade real.

O Homem morreu, a conduta e a própria vida transformam-se em meros problemas técnicos. A realidade polissémica é fragmentada em provincialismos que estrategicamente descartam quaisquer noções de Verdade, Beleza ou Justiça.

Resta, aos que tinham outras aspirações, olhar de fora para esta amálgama de ratos cegos, que se acotovelam e, na ânsia de se sentarem em tronos feitos de esterco, surripiam os dejectos uns dos outros.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Deus

O homem nunca há de compreender algo no qual procura a explicação para o que não entende em si mesmo.
Deus só é necessário porque temos consciência das nossas próprias acções mas não conseguimos compreendê-las.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O Zorro da Golegã

Orgulhoso, em plena treva da noite, o Zorro da Golegã deixa-se passear, é passeado. O seu puro sangue lateja nas têmporas, o vinho tinto do jantar, e também entre as arqueadas pernas equestres. A virilidade que liga o homem ao animal é também uma união de corpo e de sangue. Traja a rigor, de cinzento e negro, como entre os seus pares manda a tradição, e sustenta, no alto da cabeça, um chapéu negro de longas abas. Este é um verdadeiro Zorro, cuida dos seus como ninguém, dos outros só não cuida do que não pode. Um seu direito, pensa o herói que ostenta a herança da nobreza, que lhe é natural e que o eleva acima do resto de nós, homens vulgares e pobres, irremediável condição, toda a gente sabe que nada cresce na estéril herdade do vulgo. É um messias incompreendido, o Zorro da Golegã, que possui uma verticalidade de homem são, porque é o último homem, e salvo, porque salva o mundo inteiro com uma moralidade contagiante. Salva quem não se apercebe de que foi salvo e salva mesmo aqueles a quem a perdição seduz e a salvação repele. Mas não se incomoda, o Zorro da Golegã, com tão mesquinho facto e brilha por onde passa. Deixa-se deslocar, o deslocado, no dorso do seu corcel, e assim lava o séptico lodo humano à sua volta, que definha para renascer enquanto criança, anjo, santo converso, com uma face resplandecente, reflectindo a luz de tal astro.
Passeava-se pela rua quando repara numa pequena desordem. Aquecido pelo álcool e inchado pelo estatuto, aproxima-se dos arruaceiros para impor a ordem. Qual Dom Quixote, montado num outro Rocinante, é enxovalhado e ridicularizado, pobre Zorro, triste pela verdade incompreendida que transporta, pela plebe que não mais se ajoelha perante os nobres cavaleiros. Revoltado e humilhado, uma vez que não mais lhe é reconhecida a função social que por direito as herdadas terras lhe conferem, amaldiçoa todos os deuses e todas as gentes. Não saberão o quão importante é para o mundo este homem a cavalo? Não saberão que sem ele tudo estaria perdido, uma vez que representa o último baluarte da moral nesta terra danada? "Não merecem o pouco que têm", escapa-se-lhe o conjuro que denuncia que esse pouco não lhe escapa à cobiça, justa claro está, e afasta-se, fingindo não se incomodar com tão mesquinha gente.