sábado, 27 de fevereiro de 2010

ATLAS, O NÓMADA




Qualquer espírito ficaria inquieto se, na semi-lucidez de uma noite húmida de Inverno, sentisse apoiada sobre o crânio toda a massa do firmamento e, na palma dos pés, o empurrar da superfície terrestre que lhe reage violentamente. Que força terá maior existência que o desejo de reencontro recíproco entre o alto e o subterrâneo?

Pensar que o corpo separa é puro engano, este nada sabe do que está acima ou abaixo, a montante ou a jusante. Ainda menos quando ofuscado pelo astro negro que escurece o dia durante a noite e que exige às almas dedicarem-se, como marionetas ébrias, aos ritos do sangue.

O peso que se faz sentir nos torneados dos tornozelos é de origem desconhecida, embora se suspeite desde há muito que é um ataque ao que é dito, ou pelo menos pensado, por aí. A palavra corta a realidade em fatias e a mentira cobre-as com geleia de frutos silvestres: alusão irónica ao pequeno-almoço canibal dos burgueses.

Comprimida, a existência nómada persegue a posição futura desta desunião, descrita nas páginas do livro que escreverá antes de nascer, buscando uma linha de fuga perpendicular à insustentável realidade, sem se aperceber de que se trata da sua morte.

Por sorte é-nos vedada qualquer consciência disto.

...

"Era uma vez, com mais duas seriam três, quatro homens e cinco mulheres, com seis olhos sobre sete bocas. Amavam-se e agrediam-se até ficarem feitos num oito. Era sétima a hora, do sexto mês, quando a quinta mulher disse ao quarto homem para se tornar o terceiro espelho, com mais duas não o faria sequer a primeira vez."

No condensar pulsante de um número-género da multiplicidade andrógina só interessa a cadência que embala as estrelas desde o nascimento até à morte. Tudo o resto é ruído de um pedal motorizado.

...

As vozes provenientes dos volumes impeditivos ao sonambulismo quotidiano, que nos chamam estranhos nomes mas sabem quem nós somos, quero-as eco da alegre cantiga assobiada pelo errante.

A sensação de ser esmagado por existências, pela repetição eterna da una experiência, vista através de infinitas lentes contorcidas, quero-a arrepio de ser o absoluto.